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Sobre Afonso Lopes Vieira

Afonso Lopes Vieira: dos heróis e dos grandes homens reza a história

Investigadores como Pierre Nora (1986) e Mona Ozouf (1986) demonstraram a importância que o culto aos heróis fundadores e aos grandes homens desempenharam nos discursos subjacentes à fundação dos vários tipos de comunidades modernas (Ozouf, 1986).

A criação dos grandes homens e dos heróis possui, em cada um destes conceitos, imagens sociais que ora os aproximam dos seres humanos, ora dos divinos. No primeiro caso temos os grandes homens, seres mortais, terrestres, cuja categoria inclui muitas figuras do Estado-Nação, escritores de renome, pintores, cientistas, poetas e gente comum como pais de família exemplares. Estes, de acordo com os cânones da Revolução Francesa, destacaram-se das massas pelo contributo que deram num qualquer campo da vida social.

Os heróis constituem personagens posicionadas num campo de contacto entre o mundo dos homens e o dos Deuses. Fazem parte desta categoria os santos, reis, guerreiros e rainhas, muitos deles santificados. Os heróis estabelecem a ponte entre o mundo visível e o invisível, reclamando a legitimidade em Deus para exercerem o poder político sobre os seus reinos (Bourdieu, 1989; Pomian, 1984; Kantorowicz, 1999: 37), no caso dos reis, ou religioso, no caso dos santos (Ozouf, 1986). Como declarou Jaime I, rei inglês de inícios do século XVII, “Os Reis são com razão chamados Deuses, porque exercem sobre a terra um poder semelhante ao Poder Divino” (Kantorowicz, 1999: 37).

Na categoria dos grandes homens incluem-se personalidades portuguesas que se destacaram pela sua obra em prol da nação. Também as comunidades locais possuem os seus grandes homens. Este desiderato é observado na Marinha Grande, onde se destacam reis e poetas cuja acção contribuiu para a afirmação da comunidade local.

Em São Pedro de Moel, Marinha Grande, a figura dos heróis fundadores conjuga-se em harmonia com a dos grandes homens: se D. Dinis plantou o Pinhal de Leiria, Afonso Lopes Vieira transformou-o num ícone da sua região, ao declamá-lo seus versos.

Afonso Lopes Vieira faz parte da categoria dos grandes homens marinhenses, leirienses, portugueses e europeus. Pela obra desenvolvida foi imortalizado na metamorfose da sua casa à beira-mar plantada em museu. A casa-museu é, como refere a Doutora Cristina Nobre, um lugar literário, sem dúvida, mas também um lugar de memória. Em cada canto, em cada azulejo, em cada móvel, em cada livro, enfim, em cada objecto sopram a sensibilidade, a inteligência e a escrita de um poeta imortal.

O mar e o pinhal, cantados por Afonso Lopes Vieira constituem os principais símbolos identificativos da Marinha Grande. O simbolismo que estes dois elementos alcançaram no repertório local materializou-se na sua apropriação e inscrição no brasão de armas do município marinhense, que incorpora um pinheiro de ouro ladeado de duas vieiras assente sobre dunas de areia. O vermelho do campo simboliza a força, o vigor, a actividade, uma energia constante. O pinheiro, o realce do seu tronco e as vieiras são de ouro por este ser o metal mais rico e que significa poder e liberdade.

O frutado de verde é associado à firmeza e honestidade.
As dunas de areia de prata esmalte denotam humildade e riqueza. Características tão bem delineadas pela obra de Afonso Lopes Vieira.

Nem sempre valorizada da melhor maneira, a heráldica permite compreender a realidade cultural da comunidade marinhense.

A heráldica municipal ha merecido poca atención como objeto simbólico por parte de los antropólogos. Y sin embargo encapsula símbolos de la realidad cultural en que se inserta. Es multifacética: representa personas, grupos, hechos históricos, valores, autonomía de la ciudad, individualidad, afirmación de soberanía. El análisis de los símbolos heráldicos revela motivos de la topografía o paisaje local (río, castillo, muralla, animales, árboles) hitos cristianos y situaciones históricas que denotan el valor y la lealdad de la ciudad a sus héroes (Cátedra, 2003: 64).

A obra dos heróis e dos grandes homens da Marinha expressa-se, portanto, em elementos pictóricos como o pinheiro ou as duas vieiras que ladeiam o escudo do concelho. A atribuição da acção heróica a Afonso Lopes Vieira encontra-se da mesma forma ligada à importância do pinhal na epopeia dos descobrimentos. Nos séculos XV e XVI saiu desta mancha florestal muita madeira que serviu para construir as caravelas e as naus das descobertas. Foi com a madeira do Pinhal que se construíram as nossas caravelas, os mastros das nossas naus. Foi o solo da Marinha Grande, os seus areais dourados, que forneceram a seiva que alimentou esses gigantescos pinheiros, matéria-prima base da nossa frota dos Descobrimentos e Conquistas (Cardoso, 1944: 46) e de grande parte da obra do nosso poeta

O Pinhal de Leiria. Foto: Autor.

Dois séculos depois o pinhal de Leiria viria a estar na origem do desenvolvimento industrial da região. Constituiu uma matéria-prima fundamental para a instalação da indústria vidreira na Marinha Grande. Fornecendo combustível para moldar o vidro, introduziu o concelho na modernidade industrial que se desenhou por toda a Europa, ao longo dos séculos XVIII e XIX.

A expansão industrial (nos séculos XVIII e XIX) e o aumento demográfico trouxeram a necessidade de produzir carvão de madeira quer para alimentar os fornos das indústrias metalúrgicas e de vidro, quer para o aquecimento das populações. Em meados do séc. XIX começou a produção de produtos resinosos, nomeadamente com a extracção da goma dos pinheiros (Joanaz; Soares, 2001: 1).

A inauguração da Casa-Museu Afonso Lopes Vieira, inserindo-se num tempo em que este tipo de estruturas se transformou num meio de imortalização de heróis e de grandes homens (Ozouf, 1986), na localidade de S. Pedro de Moel, povoação onde o pinhal e o mar se encontram, constitui o maior tributo ao poeta.

A corporização da memória do poeta consubstancia-se não só na casa mas também nos objectos que dela fazem parte, relíquias sagradas contendo a marca vivida do poeta. A instalação do paradigma moderno, a inauguração das comunidades de âmbito nacional, e depois regional e local bem como a procura da sua legitimação em tempos imemoriais, incrementou o movimento de criação de lugares e de objectos de memória.

Bibliografia

BOURDIEU, Pierre (1989) O Poder Simbólico. Lisboa: DIFEL.
CARDOSO, Leonel de Parma (1944) “O Distrito de Leiria: Coração do Império”. In Livro do I Congresso das Actividades do Distrito de Leiria. Leiria: Casa do Distrito de Leiria, pp. 45-49.
CÁTEDRA, Maria (2003) “La violencia de las Imágenes: Giraldo Sem Pavor”. In Afonso, Ana Isabel; Branco, Jorge Freitas (orgs.) Retóricas sem Fronteiras 2: violências. Oeiras: Celta.
KANTOROWICZ, Ernst (1999) Morrer pela Pátria. Lisboa: Edições João Sá da Costa.
NOBRE, Cristina (2007) Fotobiografia de Afonso Lopes Vieira, 1878-1946. Leiria: Imagens & Letras.
NORA, Pierre (dir.) (1986-1992a) Les lieux de mémoire I-VII. Paris: Gallimaurd (7 vols.).
NORA, Pierre (dir.) (1986-1992b) ”Entre Mémoire et Histoire”. Les lieux de mémoire - I La République. Paris: Gallimaurd, pp. 17-42.
OZOUF, Mona (1986) “Le Panthéon, L’École normale dês mortes”. In Nora, Pierre (dir.) Les Lieux de Mémoire – I La République. Paris: Gallimard, pp. 139-163.
POMIAN, Krystof (1984) “Colecção”. Enciclopédia Einaudi. Lisboa: INCM, pp. 51-87.
SOARES, Renato; JOANAZ, Salomé (2001) O Pinhal e a Lagoa [online]. [Leiria, Portugal], [citado em 05 de Agosto de 2007; 11:10 horas], disponível na Internet em http://www.regiaocentro.net/lugares/leiria/pinhalelagoa.html 

 

 

São Pedro de Moel, 18 de Junho de 2011

Fernando Magalhães