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Especiais rasgam ondas do Atlântico

No âmbito da cooperação e do diálogo entre Portugal e o Brasil sobre judo adaptado realizou-se na passada semana uma conversa exploratória entre dinamizadores de ambos os lados do Oceano Atlântico para promover uma abordagem reflexiva sobre as especificidades e os desafios desta modalidade de judo que é apresentada como sendo para públicos especiais.


O diálogo luso-brasileiro sobre judo adaptado apenas começou. Pelos vistos há imensa matéria para conversar e até para aprofundar. O que surge à evidência é que muitas são as bases comuns e que são outras tantas, as diferenças. Há toda uma aprendizagem a desenvolver entre pares que aliás é desejada e até esperada pelos protagonistas deste primeiro intercâmbio que juntou peritos, professores, pais, alunos e instituições diversas. O bate-papo que João Teixeira e Peri Amaral recentemente animaram numa sessão realizada a distância, por sinal muito participada, foi apenas uma primeira de muitas iniciativas que já foram anunciadas.


E nada como vir ao terreno e verificar in loco as experiências e os projetos referidos nestas partilhas e debates online. É exatamente nesse sentido que já estão a ser desenhadas e programadas visitas de ambas as partes que trarão Peri Amaral a Portugal e levarão João Teixeira ao Brasil. As duas figuras de referência desta dinâmica colaborativa não cessam de mencionar o caráter coletivo das ações que estão a ser levadas a efeito nos dois países e de valorizar o trabalho de equipa. João Teixeira vai mais longe quando afirma, de forma categórica, que os projetos não são de ninguém, pertencem aos territórios, ou seja, ao quadro político, económico, cultural, ambiental e social no qual vivem todos aqueles que neles participam.

 

Os imperadores


Júlio César, Henrique, João e Pedro foram os verdadeiros, imperadores, navegadores, príncipes perfeitos e grandes czares da conversa. As vozes que Adriana, Neuza, Neves e Renata lhes emprestaram foi por mera circunstância do formato da partilha. Sim porque em cada um deles já mora autonomia. Em dose ligeira, mas suficiente. É mais do que nada. É muito mais do que pouco.
Júlio César anseia pelo momento da aula e tem 3 referências para o seu quotidiano: dormir, acordar e ir para o judo. O terceiro ponto constitui objetivamente uma mudança na sua vida.


Sentado na escadaria

João está sentado à espera. Veio cedo, não vá o diabo tecê-las e alguém chegar primeiro. A porta ainda está fechada, mas devem estar a chegar. Para o João esperar já é estar no judo. O seu espírito voluntário, a sua tranquilidade, os seus gostos pela escadaria, pela porta, pelo tatami fazem que experimente, nos dias de hoje , de confinamento involuntário, uma sensação de saudade. Neuza, que o afirma, sabe do que fala, sim porque com o João, nem sempre foi assim.


Contar pelos dedos

Renata que veio de longe faz a contabilidade. Dos ganhos que o grupo familiar obteve ao encontrar no judo a base da sua inclusão na comunidade local, mas faz também as contas do emploi du temps do Pedro. Os dados não deixam margem para dúvidas: o Pedro gasta mais tempo no judo do que na escola. Tudo indica que esta é a nova forma de trazer a fisga no bolso de trás. Rebolar no tapete e sentir a liberdade de viver um espaço de prazer. Tal como o Henrique, que desde os 6 anos, se adaptou a todos os desafios que lhe apareceram pela frente. E preferiu contrariar os pais que tinham uma previsão pessimista sobre a sua permanência no judo. Parece que ouviu a voz interior dos seus progenitores “um dia destes o mestre Saraiva desiste e ele vai ficar em casa”, Henrique continua, aos 14 anos a navegar de judogi, apesar do seu autismo funcional.

 

A complexidade das situações simples

Peri Amaral vai ao essencial na sua abordagem prática que é simultaneamente fundamentada nos saberes adquiridos ao longo dos anos de experiência com jovens autistas ou com significativas dificuldades motoras. O sensei, como é denominado no Brasil, indica claramente que a particularidade deste tipo de trabalho reside na especificidade e na particularidade, ou seja, no fato de cada caso ser um caso. Não há manual para lidar com a situação concreta que se tem pela frente. De uma forma geral a criança autista não aceita o toque, não entende comandos, não liga a orientações e nem sequer tem uma coordenação motora estável. Com o judo, atendendo às caraterísticas da modalidade, muitas dessas barreiras acabam por ser ultrapassadas, nem que seja pontualmente. Por isso a metodologia preferencial, no Brasil, é a aula individual. O objetivo é organizar o contexto que crie as condições favoráveis a que cada jovem se exprima. Que cada um acabe por se abrir e entenda os comandos.

 

A flexibilidade das soluções

João Teixeira, por sua vez, reconhece que o trabalho orientado para a autonomia de cada jovem autista exige um elevado investimento individual. No entanto as abordagens coletivas também têm apresentado bons resultados. O fato dos projetos com estes grupos especiais terem tido início no quadro do desporto escolar e de uma interação com uma associação local a APPACDM, estabeleceu logo à partida uma base de trabalho com um grupo pré-constituído. Esta realidade moldou o sentido da experiência e enquadrou de forma natural as bases metodológicas aplicadas.

João Teixeira recuperou alguns ingredientes particularmente favoráveis para a valorização do judo como resposta ao autismo e a outras situações como os Síndrome de Down, a Trissomia 21 e o Síndrome de Asperger: a necessidade de um parceiro, apesar de ser um desporto individual; aprender a cair sem se magoar; a flexibilidade, que facilita opções entre judo em pé ou no chão e a riqueza das interações motoras que as técnicas proporcionam.

 

Realidade diferentes

Enquanto que Brasil, segundo Peri Amaral, as crianças são maltratadas porque não têm apoios e os colégios privados não se preocupam com as situações tidas por marginais, em Portugal a Escola Pública tem uma estratégia inclusiva e acolhe todo o tipo de situação no seio da comunidade escolar, dotando com meios técnicos especializados os dispositivos de educação-formação. O caso do desporto escolar, que oferece, por exemplo na Marinha Grande, 16 ofertas que vão da natação ao judo, é bem paradigmático dos cuidados que existem no sentido de favorecer a integração de todos nos processos educativos previstos no currículo.


Os esforços e os resultados

Independentemente das condições mais ou menos favoráveis à partida o que é certo é que a riqueza das experiências é enorme dos dois lados. Por exemplo no Brasil conseguir através do judo adaptado que as famílias se libertem da clausura da casa e participem em interações cuja finalidade é o relacionamento fora do contexto familiar, constitui uma autêntica vitória que resulta de uma atuação muito subtil e sobretudo muito persistente. Como referiu Peri Amaral “o que a família mais quer é que o filho saia para a rua e vá jogar a bola com os outros. Ou então pura e simplesmente que vá passear o cão”.


Interdisciplinaridade e voluntariado

A experiência portuguesa, neste caso na Marinha Grande, contempla ainda outras dimensões no plano pedagógico e societal. A interdisciplinaridade como elemento fundamental que favorece um novo cruzamento das disciplinas mais tradicionais, como o português e a matemática com, por exemplo, o desporto. E, num plano mais comunitário e institucional, a relação de parceria e de intercooperação entre muitas instituições do território facilitam, por sua vez, abordagens intergeracionais e de inovação social.

 

Eu sou judo


Miguel Vieira, atleta paraolímpico, que começou a praticar judo em Angola, tendo cegado posteriormente, sabe valorizar de forma muito especial estas novas dinâmicas da modalidade que favorecem dimensões afetivas essenciais: abraçar, sentir e viver.
Para Miguel, que participou na sessão e é o padrinho do projeto Judo4all, o judo ensino-lhe a não considerar ninguém inferior e simultaneamente a não aceitar situar-se numa posição superior seja a quem for.


A sessão terminou depois de vários testemunhos terem acrescentado as suas experiências às anteriormente apresentadas e ter sido reforçada a ideia-chave da missão da escola pública como espaço de formação de cidadãos, de integração e de inclusão, respondendo à diversidade e às necessidades de todos.


E Rafael rematou, de forma simples, “depois de ter iniciado e abandonado quando era muito jovem, regressei por interesse e por mim próprio. Fiz amigos. Nunca mais larguei o judo”.

Fonte: Judo Clube da Marinha Grande

Webinar disponível em https://www.youtube.com/watch?v=kSJKLCL4dU4&t=2794s

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